Brilhava o sol de maio sobre os penhascos que enfrentavam bravamente o mar, na charmosa e pequena Cefalù na Sicília. O restaurante, com vista para o verde infinito do Mar Tirreno, poderia servir aos seus clientes simplesmente isso, a vista, que já sairíamos saciados.
Não foi difícil escolher o prato. Muitos restaurantes europeus oferecem um menu relativamente limitado, pois valorizam a tradição e acreditam que ilimitado deve ser o sabor, não as invencionices. Então não espere encontrar no cardápio um penne com mussarela de búfala, frango desfiado, picanha, catupiry, couve flor e ovo de codorna, porque você não está no Spoletto.
Um menu limitado, mas executado à perfeição.
Escolhi o linguini al mare. Massa com frutos do mar, num restaurante italiano em frente ao mar, não poderia dar errado. Antes que finalizasse a primeira taça de vinho, chegou o prato, exalando cores, vapores, odores, sabores e todos os ores que meu léxico foi capaz de nominar. Pedi ao garçom mais uma taça de vinho e que me trouxesse um pouco de queijo ralado também.
Veio a segunda taça de vinho, mas não o queijo. Pedi novamente, o garçom emitiu um resmungo incompreensível e se foi.
Passados mais alguns minutos eu pedi o queijo novamente ao mesmo garçom, que com os dedos juntos e o típico gesto expansivo que caracteriza os italianos berrou (grifo no ‘berrou’) frases absolutamente incompreensíveis para a minha diminuta capacidade de decifrar o vernáculo de Michelangelo. Minha mãe, na mesma mesa, deduziu que ele teria dito que não se mistura queijo com frutos do mar. Pela testa franzida, mãos trêmulas e voz indignada, suponho que ele tenha dito muito mais que isso. Acho que ouvi uns cazzos, stronzos e outros fonemas que até hoje não tive coragem de pesquisar no Google.
Fiquei tão atônito que não consegui reagir. Muito pela surpresa e um pouco por estar na Sicília. Vai saber em que família foi parido aquele garçom infeliz? Lembrei-me de uma cena do Poderoso Chefão em que um mafioso assassina um cliente no meio do jantar, e resolvi engolir a indignação junto com mais uma garfada do linguini, que aliás estava divino, mesmo sem o queijo.
Nunca saberei o que aquele italiano queixudo me falou, mas deduzo que minha mãe estivesse certa. Durante um bom tempo eu enxerguei aquele episódio como um gesto de rudeza injustificável com um cliente. Ademais, estava pagando, e o cliente tem sempre razão.
Mas nada como o tempo. Julgar requer conhecimento das coisas e principalmente do contexto. As raízes da culinária italiana remontam ao século quarto antes de Cristo, a partir de influências gregas, bizantinas e etruscas. Dois mil anos antes do primeiro cara pálida pisar em solo brasileiro os sicilianos já apreciavam a arte da mesa. Há registros de que o poeta grego Archestratus, residente na mesma Sicília em que comi, tenha recitado em versos os segredos dos bons ingredientes e da boa cozinha.
Achei aquele garçom tão rude quanto ignorante, mas demorou para assimilar a minha própria ignorância. Ignorei pelo menos 2 milênios de tradição culinária. Ignorei que aquilo não era simplesmente mais uma refeição, e sim uma arte, pacientemente aperfeiçoada ao longo dos séculos, e que eu, com minha pressa fast-food e minha mentalidade orientada pela lógica das relações hierarquizadas do dinheiro (pago, logo, exijo) não conseguia compreender. Misturar queijo com frutos do mar, para aquele garçom era uma heresia que ele simplesmente não se permitia pactuar. Ele não podia colocar queijo naquele prato, assim como João Gilberto não permitiria colocar uma guitarra elétrica na música “chega de saudade”. Simples assim, cáspita!
O cliente é a coisa mais importante em qualquer negócio, mas há situações em que ele não tem razão, tem apenas o dinheiro e a senha do cartão de crédito. Como eu, naquela ensolarada tarde de maio de 2001. Hoje eu dou risada daquele faniquitico à la italiana, e agradeço não ter recebido o famigerado queijo ralado, que teria estragado o melhor linguine al mare que já comi em toda a minha vida.