- Olhe o reflexo na água, é seu pai, ele está vivo!
E assim o medroso Simba vê refletida na placidez do pequeno córrego a grandiosa coragem de Mufasa, obtendo a motivação para retomar o reino de seu pai, o Rei Leão.
- Humpf, grunhiu minha mulher no meio da sessão de cinema.
- Mais um filme para glorificar a figura paterna.
Retruquei que sendo um filme cujo título é “Rei Leão”, esperar coisa diferente seria o subverter a lógica implícita do enredo.
Mas pra meu desespero logo ela desfilou uma coleção de desenhos em que a figura materna é ausente ou secundaria:
Em “Procurando Nemo” o simpático peixe palhaço não possui mãe e quem faz das escamas coração para encontrá-lo é o pai. Enquanto o pai nada procurando Nemo, nada de mãe.
Em Touro Ferdinando, trama que guarda um indisfarçável paralelo com Rei Leão, só existe a figura paterna, a mãe é um hiato que ninguém se preocupa em esclarecer ao longo do filme.
Em Hotel Transilvânia a história toda se passa apenas com o protagonismo do pai. A mãe só é lembrada no final da trama.
Nem as mães anfíbias escapam. Em a Pequena Sereia não existe a sereia mãe, existe apenas o pai na vida da personagem.
Até nos filmes em que o pai é na realidade um padrasto de moral duvidosa, a figura predominante é masculina, e a mãe mais uma vez está ausente, como nas famosas sequências de “Meu malvado favorito”. E o roteiro insinua que o moço se tornou malvado justamente pela personalidade fria e ferina da mãe. Pra coroar tudo, é justamente a experiência redentora da paternidade, ainda que por adoção involuntária, que acaba por redimir a malvadeza do vilão arrependido.
E o inverso nem sempre é verdadeiro. As fábulas infantis estão repletas de madrastas malignas, como a célebre madrasta da Bela Adormecida que chega no limite de tentar envenenar a própria enteada.
Por ironia do destino, essa discussão se deu poucos dias antes do Dia dos Pais, e logo estávamos na escola dos nossos filhos assistindo à tradicional comemoração da data. Como pai que baba colorido, qualquer coisa que venha dos filhos já é motivo de orgulho e felicidade. Entretanto, não precisa ser um observador muito atento para perceber a diferença de tratamento entre a celebração do dia dos pais e das mães.
Por mais bem intencionada que tenha sido a dos Pais, comparada com a das mães é como achar que o Goytacaz será capaz de vencer o time principal do Barcelona em plena capital catalã. O dia das mães é quase um show da Broadway de tão produzido e ensaiado. Até a “mão inteligente” do mercado já sabe: o Dia das Mães é a segunda data mais importante do varejo e a efeméride paterna nem de longe se assemelha em termos de faturamento.
Em processos de separação litigiosa, com esmagadora frequência os juízes decidem que a guarda da criança deve ser da mãe e ao pai cabe ficar com as crianças um final de semana sim outro não, sina que muitos pais (lamentável dizer) talvez aceitem com resignada satisfação.
A vida nem sempre imita a arte. Talvez seja um recalque de roteiristas homens, que se vingam do protagonismo feminino suprimindo a figura materna de seus enredos. Nos seus desenhos, os pais dominarão as cenas, salvarão a vida dos filhos e serão gloriosos protagonistas de uma história heróica.
Porque na vida real, bem sabemos, após as duas horas de filme, restará apenas o testemunho do triunfo glorioso de todas as mães em todos os outros dias do ano.