A família ouviu incrédula a bizarra notícia. Vovô Geraldo seria pai de novo, aos 68 anos.
Casado há 47 anos com dona Amélia, Seu Geraldo era tesoureiro da paróquia e o último bastião de moralidade daquelas plagas. Não permitia que falassem palavrão à mesa e era um ferrenho defensor da família, da moral e dos bons costumes, seja lá o que isso significasse.
“Nada pode ser mais importante do que a Verdade”, era o seu bordão predileto.
Agora teria um filho bastardo com uma menina um pouco mais nova que sua neta mais velha.
Não era exatamente bem de vida, mas após três décadas no serviço público federal conquistara uma generosa aposentadoria, de tal modo que não foi possível imaginar coisa outra que não fosse interesse material da sirigaita pelo assanhado ancião. Desafiava qualquer senso de lógica aquela garota jovem, cabelo descolorido, tatuagem tribal no cóccix, piercing no nariz (e sabe lá seu Geraldo onde mais) se apaixonando por um homem como ele.
– A vida é assim, tentava amenizar Flávio, o poeta frustrado da família. O amor é uma flor que não escolhe tempo para desabrochar.
– Não escolhe mesmo, retrucou a mãe, porque comigo fazia muito tempo que a florzinha dele não desabrochava mais…
– Credo mãe, a Yasmin está na sala. Vai ver desenho com seu irmão no quarto, vai Yasmin…
– Eu devia ter desconfiado daquelas pílulas que ele tomava…
– Mamãe, como a senhora não percebeu?
– Achei que eram aspirinas.
– Aspirinas azuis?
– Ah, sei lá Valeria, você sabe que eu já não enxergo tão bem…
A novidade abalou a estrutura dos Silva. Dona Amélia entrou em depressão, nunca imaginou o sacrossanto marido envolvido numa vida dupla como aquela. Murilo, o genro folgado, praguejava contra a boca extra para dividir a limitada herança da família. E as netas só pensavam na repercussão que o caso teria no Facebook.
Mas vovô Geraldo parecia ter sublimado tudo isso. Sentia-se rejuvenescido, um sexygenário garotão. Não se sabe se para fazer frente às demandas de sua nova companheira, ou se para não parecer bisavô do próprio filho, passou a fazer polichinelos, abdominais e flexões às seis da manhã.
Virou uma espécie de irmão (bem) mais velho do filho temporão. Jogava bolinha de gude, empinava pipa e corria de bicicleta pelo bairro com o menino. Voltavam de joelhos esfolados e desmaiavam no sofá da sala. Felizes, exaustos e sem banho. Duas crianças separadas apenas pelo lapso das décadas, como quem ata as duas pontas de uma mesma vida.
Mas aos poucos a semente diabólica da dúvida começou a germinar na cabeça do pai. Era uma criança saudável e bonita, mas não exatamente parecida com seu Geraldo nem com a mãe. Não tinha o nariz adunco do pai, nem o queixo avantajado da mãe. Nem a fronte solene dele, nem as bochechas rosáceas dela. A única exceção eram os olhos, redondos, amarelados e profundos como os de uma coruja, iguais aos do seu Geraldo quando jovem.
O fardo da dúvida crescia sobre seus ombros como capim no matagal.
Passou a perscrutar faces anônimas, na busca de traços que pudessem justificar a existência do filho. Misturava-os no liqüidificador de sua angústia existencial com o rosto de sua Capitu pós moderna, na esperança de encontrar uma pista qualquer, num exercício tão infrutífero quanto dilacerante.
Aquela criança, que tanto amava, representava agora a materialização de sua estupidez e decadência. Ele, tão ferrenho em suas certezas e se aproximando a passos lentos do século de experiência, consumido pela dúvida e engrupido por uma rapariga volúvel e iletrada.
Mas aquela criança representava também o seu renascimento. Nunca em toda a sua existência se sentiu tão vivo, jovem e cheio de planos.
Sucumbiu aos apelos de familiares e amigos. Não podia continuar suportando o fardo da dúvida, e agendou um teste de DNA.
– Nada pode ser mais importante do que a Verdade !
No dia marcado, não levantou às seis. Não fez abdominais, flexões ou polichinelos. Decidiu não fazer o exame de DNA.
O filho seria seu, mesmo que não fosse seu. A Felicidade é mais importante que a verdade, concluiu em resignado silêncio.
Tomou café e foi acordar o filho, enquanto contemplava o amarelo profundo dos seus olhos de coruja…