Renê sempre acreditou que as coisas poderiam ser encapsuladas num teorema. Todos os enigmas do mundo não passavam de deltas a espera de uma equação pra chamar de sua.
Tudo no universo seria redutível a uma verdade absoluta, já que até mesmo a Relatividade tinha Teoria própria.
De onde viemos, onde estamos e para onde vamos não era um mistério indecifrável, era apenas o hiato histórico de um não conhecimento provisório que a ciência haveria de explicar.
– Ah, mas e o Amor? Quem haverá de explicar?
Das muitas certezas que ele trazia no peito, essa certamente era a mais retumbante.
Amor à primeira vista era uma impossibilidade fática.
Mesmo sem nunca ter se apaixonado, já avançara um bocado na formulação da sua Teoria do Amor. Amor, esse mistério incompreendido pelos tolos, era apenas o resultado de uma equação bioquímica na qual se misturavam doses extravagantes de norepinefrina, escassez de Serotonina e overdose de Dopamina, aquele neurotransmissor traquina que provoca sensação de recompensa similar à de drogas alucinógenas pesadas. Dopamina dopa a mina e o mino também.
Caminhava resoluto e inabalável com suas certezas sem nunca ter cedido aos caprichos birrentos das norepinefrinas. Todo dia o absolutismo modorrento do mesmo trajeto, metrô-trabalho-metrô-faculdade-metrô-casa.
Mas o acaso teimou em não caber nas suas planilhas de Excel.
– Estação República.
No meio da turba agitada que se descompactava do vagão metálico feito sardinhas em rota de fuga ele divisou o brilho fugaz daquelas madeixas ferruginosas.
E antes que o último centímetro de fresta selasse para sempre o inarredável destino do vagão, Renê, contrariando a lógica preservacionista de seus mais arraigados instintos, enfiou meio braço pela fresta de borracha, acionando o alarme do vagão e enfurecendo a horda apressada.
Pulou do comboio e seguiu no encalço da sua miragem do meio dia.
Fora de si, não controlava respiração, nem pensamentos.
A norepinefrina comandava os atos, e ele, tosca marionete nas mãos de um neurotransmissor rebelde.
Seu alvo fugia mais rápido do que era capaz de avançar na massa compacta de seres humanos marchando feito gado para cumprirem seus rituais diários. Cotoveladas e caneladas agora faziam parte de seu repertório ensandecido. No trajeto que o separava do alvo derrubou velhinhas, pulou catracas e fez rodar pelos ares o saco de pipocas que a criança segurava displicentemente no meio do seu caminho.
Em marcha desabalada, como um lince fotografava detalhes de sua musa: as sardas, as ondas rubras de seus cachos, o pescoço alvo e a cicatriz impertinente de uma fatídica vacina dos tempos de infância, maculando charmosamente as fibras curvilíneas de seu bíceps.
Era capaz de individualizar, no meio dos odores da multidão, o aroma discreto que se desgarrava de sua nuca, um coquetel de aldeídos, sândalo, mirra e lavanda. Sim, mesmo naquele frenesi endoidecido ainda era capaz de indexar suas sensações em fórmulas concretas.
Mas a cada lance de escada novas multidões teimavam em cerrar fileiras entre ele e seu alvo. Era como se a Estação República tivesse convocado metade da população da Índia e da China apenas para atrapalhar sua caçada febril.
E a menina do metrô foi se distanciando, distanciando, virando um apenas um vulto indissociável no meio da multidão de seres apressados demais para serem chamados de humanos, até a última nota de sândalo se perder no ar.
Naquele dia não foi ao trabalho, nem no dia seguinte.
E todos os dias retorna à mesma estação, no mesmo horário e em horários alternativos também.
Os enigmas do mundo talvez sejam deltas a espera de um teorema. Mas é possível que hajam exceções e as exceções não cabem em deltas.
O amor, ah! o amor e seus indomáveis caprichos.
O septuagésimo trem do dia abre suas portas e Renê perscruta com obsessiva atenção cada um dos rostos que se esvaem feito éter no meio da tarde abafada.
Conclui a leitura do horóscopo enquanto espera o próximo vagão.
Quase vencido pela tenacidade do acaso que rege o fluxo imponderável da multidão que entra e sai, revisa frustrado os axiomas de seu Teorema inconcluso.
Alexandre Correa Lima é professor da FGV, escritor e palestrante corporativo. Conheça mais sobre seu trabalho no YouTube, Facebook, Linkedin e Instagram.