Sou um apaixonado por livros.
Livros não apenas contam histórias, mas sobretudo mudam a história da vida da gente. Devo o amor aos livros à minha mãe que desde muito cedo me incentivou com gibis e revistinhas e também a Monteiro Lobato e sua série de livros do Sítio do Picapau Amarelo, que eu devorei avidamente.
Fora do mundo infantil, o personagem adulto mais conhecido de Lobato foi o Jeca Tatu, que causou uma certa polêmica, porque ao invés da visão romântica do caipira, mostrava um homem do campo pobre, sem instrução, preguiçoso, abandonado e atrasado.
Falando em polêmica, a biografia de Monteiro Lobato nunca esteve ausente delas. Em anos mais recentes, foi criticado pelo teor supostamente racista de algumas de suas publicações, com alusões (hoje) politicamente incorretas sobre a cor da personagem Anastácia. Houve inclusive quem sugerisse banir seus livros das bibliotecas infantis.
O Brasil sempre foi pródigo em bons carpinteiros de palavras, seja na literatura, na poesia ou na música.
Chico Buarque foi um grande mestre de brincar com a língua no seu generoso repertório de canções. Chegou a inventar uma tal de “linguagem da fresta”, uma forma engenhosa de burlar o cerco que a censura da época promovia em qualquer obra que viesse grafada com o seu nome.
Produziu grandes obras na música e nos livros. Mas como animal político sempre deixou claras suas conviccões e chegou um momento da história do país em que essas convicções entraram em desalinho com uma ampla parcela do Brasil. Num país cindido ao meio nas arenas acéfalas das redes sociais, virou esquerda caviar, petralha, defensor de ladrões, esquerdopata e cultivador de corrupto de estimação, aquele que defende o socialismo de Cuba enquanto passeia de cachecol da Lacoste nos boulevares de Paris.
Michael Jackson produziu aquele que foi o álbum mais arrebatador da história da indústria fonográfica: Thriller, de 1982, que vendeu inacreditáveis 66 milhões de discos e conseguiu emplacar todas as faixas nas primeiras posições das FM’s do mundo.
Além de lançar canções memoráveis, criou um estilo único de dançar, uma coreografia com a sua marca inconfundível. Um verdadeiro caminhante da Lua.
Mas Michael também era um ser estranho. Um bocado estranho. Aparentemente não se aceitava como era, experimentou procedimentos que fizaram branquear sua pele e modificar radicalmente suas feições originais, a ponto de virar um Frankenstein pós moderno. Era uma máquina de ganhar milhões e uma usina de torrar bilhões, e conseguiu a proeza de ficar falido em vida, mesmo com uma carreira pra lá de bem sucedida.
Isso seria pouco, se não houvesse uma outra faceta um bocado mais obscura de sua trajetória: as recorrentes acusações de pedofilia e abuso infantil. Todas terminaram em acordos judiciais milionários, como é comum na justiça americana, mas recentemente foi ao ar um documentário (“Leaving Neverland”) em que os meninos envolvidas, hoje adultos, falam com uma franqueza desconcertante sobre as coisas que aconteciam no mundo encantado de Neverland.
Pelos limites que o espaço me impõe falei apenas de Monteiro Lobato, Chico Buarque e Michael Jackson, mas poderia desfilar uma lista infinita de celebridades geniais na seara artística mas envoltas numa névoa espessa de crítica filosófica, política ou suspeição moral em outras partes de suas vidas.
E então, finalmente, chego ao ponto que motivou este artigo: é possível admirar e cultuar uma personalidade pelo conjunto de sua obra artística independente dos deslizes que possa ter cometido em sua vida pessoal?
E nesse particular é preciso traçar algumas distinções, já que os três casos não são exatamente iguais. No caso de Michael Jackson (cuja biografia aponta para uma infância sufocada pela figura opressiva do pai) são suspeitas sérias, graves e bastante densas (embora não oficialmente “provadas”), no caso de Chico Buarque resta óbvio o direito a cultivar a ideologia que bem entender (ainda que em algum momento isso conflite com a sua própria biografia) e no caso de Monteiro Lobato é preciso admitir que somos fruto de nossa época, e nem sempre temos uma visão tão clara do quão errado são os nossos costumes. Só o distanciamento histórico nos permite uma visão menos turva.
Deveríamos demolir as pirâmides egípcias, construídas com mão de obra escrava e implodir o Coliseu Romano, que abrigou o massacre de inocentes para deleite da turba ensandecida? É possível admirar o artista genial sem levar em conta o ser humano que vive fora dos palcos?
É razoável exigir uma perfeição moral absoluta, que no sigilo de nossas alcovas nem nós mesmos seríamos capazes de sustentar? Sobreviveríamos a uma devassa profunda em nossas vidas, pensamentos e convicções?
De novo, há que se traçar um marco divisório. Somos todos iguais, pero no mucho. Pessoas públicas, que gozam do glamour dos palcos e da glória dos holofotes, possuem um outro patamar de responsabilidade. Influenciam pessoas e são mais ouvidos e imitados do que a média dos mortais. A fama traz não apenas recompensas e o brilho inebriante dos holofotes, mas também uma maior responsabilidade com o que se diz, se escreve ou se pratica.
Nesse sentido, vale dizer que um escritor deve ter um olhar além de seu tempo, com uma sensibilidade para antecipar situações que, ainda que respaldadas pelo costume ou pelas convenções, talvez mereçam um pioneiro olhar crítico. Um letrista engajado com a liberdade de expressão talvez tenha o dever de perceber quando está defendendo aquilo que um dia criticou. E por fim, há comportamentos pessoais que são abjetos e indefensáveis, e não há brilho artístico que o possam justificar, sobretudo se envolverem crianças.
É possível admirar o artista ignorando a pessoa? Sim e não e talvez, depende de cada caso.
Seja como for, não tenho como renunciar à gratidão que sinto pelas portas que os livros de Monteiro Lobato me abriram, pela argúcia da poesia afiada de Chico Buarque que me incentivaram a treinar acordes dissonantes no violão, nem pelas canções inesquecíveis que chacoalharam o meu ano de 1982.
Só lamento nunca ter conseguido imitar com um mínimo de decência os passos do moon walking.