Júlio Verne precisou de 80 dias para dar a volta ao mundo. Dante Alighieri precisou de nove círculos, três vales, dez fossos e quatro esferas para descrever o Inferno na Divina Comédia. E o Brasil precisou apenas de três semanas para virar do avesso. Talvez seja o início do “futuro incerto” previsto pelo historiador Eric Hobsbawn no seu livro “Era dos Extremos”. Talvez não seja nada disso. Ninguém sabe.
Nunca antes na história desse país se viu uma reviravolta tão grande de visões, atitudes e expectativas como as que estamos testemunhando agora, após as recentes manifestações e protestos.
Éramos o paraíso prometido, um dos incensados Bric’s. Emprestávamos dinheiro ao FMI. Ensinávamos aos países desenvolvidos como conduzir as crises e superar desafios. Viramos um país de classe média, onde as pessoas têm carro, casa, emprego e quinquilharias chinesas a 1,99. Um povo ordeiro e pacífico (ou passivo?). O país do futebol. Não éramos nem mais o país do futuro, éramos a personificação do sucesso presente.
Três semanas. Menos de um mês. Um “quase-nada” em termos históricos, e viramos do avesso. Escancaramos nossas entranhas para o mundo, que estupefato assiste ao Brasil detrás dos bastidores maquiados da propaganda estatal. Saúde na UTI. Transporte público ineficiente. Explosão de violência. Impunidade. Quebra-quebra. Revoltas contra um Estado que Ingana, com tributação Inglesa e serviços de Gana.
E o povo ordeiro quebrou e incendiou o que viu pela frente. E os jovens supostamente anestesiados do Facebook invadiram as ruas. E o país do futebol tacou pedras no ônibus da FIFA e disse que não precisa de Copa do Mundo. Até disseram que o Professor é mais importante que o Neymar. E tudo mais que você já sabe e eu nem preciso gastar meus dedos digitando.
Uma catarse coletiva. Não duvido que casais estejam aproveitando para rediscutir a relação e crianças protestando por aumento de mesada.
O dado mais emblemático disso veio na mais recente pesquisa do Datafolha, realizada nos dias 27 e 28 de junho. A Presidente Dilma amargou uma queda monstruosa na aprovação do seu governo, caindo de confortáveis 57% para minguados 30%. Um em cada quatro brasileiros já acha a gestão da Presidente “ruim” ou “péssima”, sendo que três semanas antes esse índice era 1 em 9. Quase todos os políticos tiveram queda acentuada na popularidade, mas para o Planalto o desgaste foi maior. Parece catalisar as insatisfações difusas de toda a sociedade na central figura Presidencial. Somente Fernando Collor amargou uma queda tão grande, e para tanto precisou saquear as economias de todo o povo brasileiro no tão famoso quanto estapafúrdio confisco da poupança.
Do céu ao inferno, sem escalas e sem barrinhas de cereal.
É muito provável que a realidade esteja em algum ponto entre aquele céu virtual e esse inferno atual, mas a turbulência não permite divisar. Está mais do que claro (preciso desenhar?) que temos problemas sérios, econômicos, sociais, estruturais, e principalmente políticos. Uma montanha tão grande de lixo jogada debaixo do tapete da sala que já nem é mais possível entrar na sala. Como também é preciso muita má vontade para não admitir que nos tornamos um país melhor (o que não quiser dizer necessariamente bom) ao longo das duas últimas décadas. Melhor, mas possivelmente longe do que desejamos, podemos ou merecemos.
Parece evidente que o povo cansou do modelo, cansou dos políticos. A rejeição aos partidos e instituições nunca foi tão grande, o que torna tudo mais complexo, já que é difícil instrumentalizar todas essas demandas complexas atualmente se não for pela via política, que é o modus operandi da democracia. A última experiência que a humanidade teve com a democracia direta foi em Atenas, no século V a.c. (isso mesmo, antes de Cristo), quando as pessoas se reuniam em locais públicos para deliberar sobre assuntos de seu interesse. Não parece um modelo factível para megalópoles cada vez maiores e heterogêneas ou para um país de 200 milhões de pessoas. As próprias franjas minoritárias, violentas e radicais dos protestos, evidenciam a dificuldade de articulação de uma massa sem um mínimo de institucionalidade e liderança formal.
O problema não está no sistema representativo, mas na qualidade dos representantes. Ou mesmo, mea culpa seja feita, da excessiva passividade, falta de envolvimento e cidadania de boa parte da população brasileira, que só se mobiliza a cada duas décadas, quando a paciência esgotou e o copo transbordou.
Talvez estejamos ainda por inventar algum sistema que permita um protagonismo maior dos cidadãos e suas caleidoscópicas demandas. Quem sabe uma cyberdemocracia num futuro não tão distante?
Seja como for, temos um monte de explicações parciais para o que vem ocorrendo no Brasil. Modelo econômico se exauriu, classe política não se oxigenou, interesses difusos, classe média sufocada por serviços ineficientes, explosão de violência, baixo crescimento econômico, recrudescimento da inflação, falta de habilidade da polícia nas primeiras manifestações, demandas sufocadas, dentre outros. Mas parecem peças soltas de um quebra-cabeças ainda difícil de ser montado. Ninguém é capaz de prever os desdobramentos de tudo isso a médio e longo prazos.
Dia desses li a tese de uma respeitada acadêmica da USP sobre as manifestações, relacionando-as aos distúrbios na periferia de Paris há alguns anos, e na sequência um artigo de um sociólogo rechaçando os pontos de semelhança entre os dois episódios. A ombudsman da Folha de São Paulo, Suzana Singer, admitiu que não está sendo fácil interpretar adequadamente os acontecimentos. Renomados analistas desdizem cautelosos hoje cedo o que disseram enfaticamente ontem à noite.
Numa era de tantas incertezas, talvez o mais sábio seja admitir, pelo menos por enquanto, que tudo que sabemos, é que não sabemos nada.