Estava entregue aos prazeres morféticos do mais absoluto ócio, naquele átimo de existência em que a inebriante bomba congestiva de meio quilo de nhoque com carne assada entra em conluio com os efeitos entorpecentes de uma maratona de séries da Netflix, quando meu filho invadiu o quarto e intimou:
– Pai, vamos fazer alguma coisa bem legal?
Era claro que do alto da sabedoria dos seus quatro anos de idade ele não tinha a menor ideia de que coisa legal iriamos fazer. Tudo que ele queria era me resgatar daquela masmorra e fazer qualquer coisa comigo. O que já seria bem legal.
Segui-o pela casa enquanto ele procurava ansioso qualquer artefato com o qual pagar o meu resgate. Tentou simular um solo de guitarra em uma escultura minúscula de violão, depois pediu para eu encontrar um brinquedo inencontrável, até desenterrar, das profundezas esquecidas do armário, uma velha rede embrulhada como se fosse um rocambole colorido de renda cearense.
– Pai! Vamos balançar na rede?
E então, como mágica, aquela astuta miniatura de mim sintonizou-se com a pequena criança que ainda habitava minhas profundezas insondáveis, despertando-a da dormência auto infligida.
Logo estávamos balançando na rede, atingindo alturas cada vez mais imprudentes, como se quiséssemos lamber as nuvens, de tão felizes.
E balançamos, e cantamos os escravos de Jó e desvendamos formas indecifráveis das nuvens e gritamos doidamente e entrelaçamos nossos corpos na rede estreita, como se fôssemos um.
E então o dueto foi lentamente dando lugar ao meu grunhido solitário, porque ele adormeceu, encaixado no meio das minhas pernas, enquanto a rede se esforçava para prolongar o vai e vem com os últimos espasmos que a lei da inércia permitia.
Olhei aquele projeto de gente, tão parecido comigo (tadinho!), suas canelas finas e imberbes, pareadas com as minhas, cheias de cicatrizes de tombos e quedas que um dia ele haverá de conquistar.
E soprou uma brisa fria misturada aos últimos raios de sol que abandonavam o posto naquele final de domingo. E as nuvens começaram a manchar o azul do céu num rastro indefinido, borrando as figuras que com tanto esforço decifráramos pouco antes. E os bem-te-vis voaram apressados, em flechas organizadas. E ele continuava ali, colado à minha forma, se mexendo apenas pela oscilação suave de sua respiração infantil.
E descobri maravilhado que 30 séculos de filosofia ocidental e oriental não seriam capazes de me fornecer uma definição maior de Felicidade do que aquela. Poderia o mundo acabar naquele momento, seria uma pena, mas seria um derradeiro instante feliz. Poderia o dólar atingir o patamar de duzentos e setenta e nove reais. Poderia o Brasil ser anexado à Argentina ou qualquer outra obtusidade injustificável que conquanto eu continuasse ali, pouco importava.
E então bateu um medo de que ela me escapasse, porque do pouco que sei sobre a Felicidade tudo que sei é que ela nos escapa assim que a gente se dá conta de sua presença. E eu fiz um esforço desumano para esconder aquele sorriso bobo e involuntário que tinha se formado entre as minhas duas orelhas e até franzi a testa em pose circunspecta para que a Felicidade não saísse dali voando junto os bem-te-vis.
Tudo que eu queria era prolongar indefinidamente aquele momento único de Felicidade.
E a vida virou um filme onde eu era mero coadjuvante. E percebi que ali no meu colo estava uma fonte de Felicidade e de Sabedoria infinitas. E agradeci por ele ter me resgatado da masmorra escura e ter conseguido enfim o seu intento: fazer com seu pai uma coisa bem legal. Bem mais legal que eu poderia um dia imaginar ou talvez merecer.
Agora saciado, ele dormia o sono dos justos e sábios.