Apagão

blackbox2Tudo indicava que seria mais um domingo previsível como costumam ser todos os domingos do mundo.

Afundado no sofá, assistindo o Faustão e digerindo aquele mix agridoce de tédio com angústia existencial que caracteriza o crepúsculo de todos os domingos, quando o inesperado acontece.

Poof. E no sétimo dia, desfez-se a luz.

De início mantenho a fleuma, certo de que a energia retornará em questão de segundos. Mas logo me vejo obrigado a abandonar o conforto do sofá (já perfeitamente moldado à disformidade do meu corpo) para buscar alguma luz no fim do túnel.

Caminho feito zumbi na escuridão implacável e bato impiedosamente a canela na mesa de centro. Saio quicando feito Saci Pererê e testo a resistência da testa na porta de entrada. É claro que a vida no escuro é muito mais difícil.

Tento achar o celular para iluminar o caminho até alguma velha vela esquecida na despensa, mas cadê o celular? Num lampejo de genialidade, tenho a brilhante ideia de ligar para mim mesmo, mas sem energia o telefone sem fio não funciona.

Depois de algum tempo e muitos hematomas encontro a vela, mas não o fósforo, porque o fogão tem acendimento elétrico e ninguém usa mais fósforo. Penso em ir pro quintal, achar gravetos e fazer fogo no melhor estilo Homo Erectus, mas a última vez que fiz isso foi há 10.000 anos, numa extemporânea reencarnação neolítica.

É engraçado como um episódio tão prosaico pode mudar tudo, catapultando-nos da modernidade do século 21 diretamente para a idade das trevas.

Um simples apagão e lá se vão ar condicionado, banho quente, microondas, e-books do Bauman, National Geographic, Faustão (uma forma eletrônica de voltar à Idade Média), vídeo game, wifi, Google ou Internet. E em poucas horas pelo mesmo caminho irão minha geléia de damasco, a cerveja gelada e o patê de gorgonzola. Um feroz ataque de tacape no meio da testa da minha modernidade pedante.

Mas não basta eliminar meus confortos, o passo seguinte é dizimar minha paz de espírito. Nuvens negras de tempestade começam a se formar nos céus de chumbo e um vento fantasmagórico e mau agourento passa a invadir todas as frestas da casa. E eu, machão convicto, passo a imaginar ladrões, psicopatas, fantasmas e almas penadas tomando de assalto minha casa. E também entidades espirituais e seres de dimensão ainda não dimensionada querendo abduzir-me para experiências intergalácticas macabras.

Só me resta pegar o carro e fugir de casa, mas sem energia o portão elétrico não funciona. Penso em procurar as chaves de emergência do portão, mas é impossível encontrá-las no breu. Penso de novo em achar um fósforo para acender uma vela para achar o celular. Não consigo. Então penso de novo em achar gravetos para fazer fogo, mas desisto quando lembro que o jardim foi invadido por monstros e assassinos seriais.

Atordoado, penso então em procurar de novo o celular para iluminar o caminho até um fósforo para acender uma vela para alguma divindade que me proteja desses seres malignos.

É quando por milagre a luz se acende e a normalidade é restabelecida naquele doce lar mal assombrado.

Aliviado, tomo um banho quente para relaxar, pego uma cerveja gelada, torradas com patê de gorgonzola e me afundo no sofá da sala para assistir na National Geographic um documentário sobre Thomas Édison, certo de que dentro desse corpo imberbe de homem pós moderno ainda habita, nas profundezas da minha existência, um ancestral das cavernas, esperando apenas o primeiro apagão para aparecer sacudindo seu tacape de pedra lascada bem no meio da minha sala de porcelanato polido.

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