A ilha

Antes que entrasse afobado no cubículo de inox que me levaria até o subsolo 2, vislumbrei-a de esgueio, logo atrás da rampa, feito miragem.

Esqueci a pressa e o custo nababesco da hora estacionada e segui a passos firmes.

Não pude acreditar que aquilo tudo pudesse estar a tão poucos metros do frenesi desvairado da Avenida Paulista. A arquitetura sinuosa, as curvas assimétricas, a rampa levando a mundos inexplorados, o carpete quadriculado, tudo remetia a um mundo inteiramente deslocado daquele lugar da cidade.

Hordas de pessoas esparramadas pelo chão lendo. Lendo livros!!! Uma moça, deitada num pufe, cochila com o livro da Martha Medeiros na cara, sem se importar com a brisa fugidia que balança as flores de seu vestido primaveril. Um moço com cara de alternativo folheia um livro do Bauman enquanto seu fone de ouvido jorra decibéis pelas bordas de sua orelha Pataxó.

Pessoas alheias ao tempo que corre apressado na Paulista leem despreocupadamente, como imersas numa bolha.

Um trompete serelepe faz malabarismos sem rede de proteção numa melodia nota Djazz.

Penso que saí de um coma induzido após me intoxicar com os burritos ao molho de cheddar picante da noite anterior, e acordei no reino encantado de Domenico de Masi, onde todos praticam o ócio criativo.

Por uma fração de eternidade chego a pensar que o mundo tem salvação, que os livros ainda terão vez num mundo que cabe em 140 caracteres, uma dúzia de emoticons e uma saraivada de “kkk’s”.

Mas sei que esse nao é o mundo. É apenas uma ilha de algumas poucas centenas de metros quadrados, esperando a hora de submergir feito uma Atlantis de papel.

A cafeteria está lotada. Transbordando gente e assunto. Talvez porque seja uma da tarde. Talvez porque devorar uma torta seja mais fácil do que devorar um livro.

Mulheres magérrimas e com cara de primas de algum duque escandinavo comem em slow motion uma saladinha gourmet.

Um gordo avança numa torta de maçã.

A cafeteria é charmosa, mas fico com a impressão que a Biblioteca é apenas um pano de fundo proto cabeçóide para o capuccino machiatto mais caro que um livro.

Tem mais gente na fila do café do que no caixa da livraria e isso grita fundo em mim.

Lá fora o Xing Ling transborda de gente. Os ônibus lotados. Um moreno magricela esgoela “não chores mais” na esperança de qualquer circunferência de níquel ou no mínimo um olhar de aprovação.

Sei que as livrarias vão acabar e quero sorver os últimos minutos ali antes de entrar no carro e ir cheirar fumaça de óleo diesel na 23 de maio.

Penso em comprar um livro, mas lembro das centenas de livros que comprei e não li, do preço elevado e da crise econômica e da guerra civil no Congo.

Aí lembro da tarifa do estacionamento que daria para alimentar uma criança somali por um mês (ou comprar mais um livro que eu ainda não vou ler por enquanto).

Sei que não vou mandar dinheiro para uma ONG na Somália, volto lá e compro um livro qualquer, como se fosse um ingresso pelos 45 minutos de deleite, ou por saudades antecipadas, ou por pena, ou pela culpa inconfessa de ter pesquisado com o próprio wifi da loja um livro mais barato num site comparador de preços.

Saio olhando para trás em deferência sincera, enquanto me afasto do paraíso. Ela está lá, inteira, imponente, mas sei que é apenas uma ilha, e um dia irá afundar ou virará uma sala de visitação para turistas curiosos, feito a Biblioteca de Coimbra, cujos livros apenas os morcegos leem.

É o fim anunciado. Desço o elevador e ponho um fim no drama, não antes de pagar o estacionamento que custa mais caro que a entrada do Museu do Louvre.

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